Saturday, December 24, 2005

Natal

Era uma vez uma menina e um gato. O gato brinca na rua, a menina vive lá. Todas as migalhas são partilhadas e todos os sorrisos também. A menina sorri, alegre e sincera, quando alguém lhe dá uma moedita. O gato saltita em volta dela com uma elegância até então escondida, talvez contente por ver a menina sorrir. Está frio e a menina está encolhida, embrulhada numa capa velha. O gato vai para o seu colo e enrosca-se. Também tem frio e a menina faz-lhe festas. Ele gosta e estica o pescoço em sinal de reconhecimento e amizade. O gato estica as patitas a provocá-la e a menina alinha na brincadeira. Fazem um bonito quadro a menina e o gato preto. O gato tem o pelo brilhante e com um aspecto macio. A menina trata-o bem. A menina está impressionada e olha com um brilho apaixonado para os presentes que circulam à sua frente em sacos coloridos nas mãos das inúmeras pessoas que passam junto dela. O gato olha, espantado, para ela. A menina parece hipnotizada com o movimento frenético à sua volta. O gato está confuso, com tanto movimento, nem sabe para onde olhar.A menina tira um bolo de um saco. Estava com fome e sabe-lhe bem esta gulodice. Não acaba de o comer e esfarela umas migalhas para o seu fiel companheiro.O Natal deve ser passado entre amigos. A ceia deve ser partilhada. Está mesmo muito frio...

Monday, December 12, 2005

Náufrago

Sozinho. Abandonado. Só me ocorre pensar porque me terá acontecido isto. Eu não merecia isto!
Dizem que cada um tem o que merece. Não acredito. A ser assim, bastaria esforçarmo-nos por fazer o bem que, inevitavelmente, a vida nos correria bem. E quem é a entidade que avalia e decide da bondade dos actos de cada um? Deus? Ah, ah, deus... Qual? O das pegadas na areia que me carrega na alturas das dificuldades? Esse deixou de andar ao meu lado há já muito tempo.
De qualquer modo, a vida sorri para muitos que não merecem. Tenho inveja, muita. Parece que é um dos pecados capitais. Mais um que carrego...
Engraçado, ao longo da vida nunca perdi muito tempo a pensar na morte. Desde que aqui vim parar depois do acidente, tenho dedicado muito do meu tempo a esta actividade. Dizem que antes de morrer revemos a nossa vida num instante. Espero que não. Desagrada-me pensar que o que fiz se consegue resumir num mísero instante.
Já perdi a esperança de ser encontrado. Nas histórias, os náufragos enviam uma mensagem numa garrafa para poderem ser salvos. Não tenho garrafa, não saberia o que escrever e não sei onde estou. Estou perdido!
Sei que irei morrer em breve. A fome e o cansaço estão a vencer a batalha contra a minha vontade de sobreviver.
Já pensei no suicídio. Assustei-me. Acho que os homens querem duas coisas na vida: sobreviver e ter paz consigo próprios. O pensamento de suicídio vem quando o desejo de paz é maior que o de sobreviver.
Se fosse crente, esta era a altura para me arrepender dos meus pecados. Nunca perdi muito tempo a pensar nas coisas passadas.
Quando era criança e me confessava pensava sempre: "Como é que o padre sabe se eu estou realmente arrependido e que mereço a absolvição?"
Um dia decidi perguntar à minha mãe. Respondeu-me: "Deus sabe se estás a ser verdadeiro ou não."
"Nesse caso, para que serve o padre?", repliquei.
Realmente, um deus que precisa de intermediários para absolver os pecados, não deve ser grande ajuda agora que naufraguei e vim aqui parar.
Talvez seja o meu castigo pela vida que levei. Mas não estou arrependido. Seria oportuno, como o ladrão na cruz que se salva no último instante.
Ficarei à porta do paraíso...

Tuesday, December 06, 2005

Diálogo

- O que estavas a fazer?
- Porque queres saber?
- Não quero, perguntei apenas por simpatia.
- O que te faz pensar que é simpático perguntar isso?
- Desculpa, estava só a fazer conversa.
- Não tenho paciência nenhuma para isso. Se não tens nada para dizer, não achas que seria mais simpático ficar calada?
- Estás impossível, às vezes nem sei como é que te aturo...és tão complicado!
- Eu? Apenas sugeri que devemos ficar calados quando não temos nada para dizer. Parece-me difícil ser mais simples que isto.
- Dá-te assim tanto trabalho falar comigo?
- Se calhar é mais difícil ficar calado.
- Não comeces!
- ...
- Às vezes tenho a impressão que te achas superior a toda a gente.
- Porque dizes isso?
- Falas sempre com esse tom. Parece que não te interessa nada dos que os outros dizem. E olha que não sou a única a pensar assim.
- Não tenho a culpa se, na maioria dos casos, as outras pessoas não falam de nada que me interesse. Era o que me faltava ter de dizer disparates só para manter conversas com pessoas que não me interessam. Não tenho paciência, pronto!
- Já reparaste que cada vez falas com menos pessoas?
- Já. Devo estar a ficar refinado.
- Nunca te ocorreu que, se calhar o problema é teu?
- Qual problema?
- Não tens notado que, aos poucos, toda a gente se tem vindo a afastar de ti?
- Sim.
- E não achas estranho? Não te perguntas porque será?
- Não. Não perco tempo a pensar nisso.
- Não achas importante pensar nos teus amigos?
- Se fossem meus amigos, não se afastavam.
- Se calhar afastaste-te tu e não os deixaste vir ter contigo.
- Se calhar...
- Bem, já percebi que não queres falar. Adeus!
- Pois, adeus.