Monday, October 31, 2005

Um caminho

Vou a caminho da estação. São sete e meia e faltam treze minutos para o comboio chegar. Não estou atrasado, já deixei para trás o quartel dos bombeiros e falta apenas atravessar a travessa junto ao jardim municipal. Era capaz de fazer o caminho de olhos fechados, há tantos anos o percorro diariamente. Conheço os cheiros, as pinturas nos muros, as pessoas que passam com ar apressado e indiferente.
Na esquina da travessa com a rua da estação está um homem. Dorme aqui todas as noites desde Setembro. À hora que passo está ainda deitado, embora acordado. Veste um casaco grosso e cinzento, parece um sobretudo. As calças, de tecido fino, não devem ajudar com este tempo.
Deve ter à volta de cinquenta anos mas os cabelos brancos invasores e despenteados podem ajudar a confundir. Por detrás das sobrancelhas brancas e espessas, espreitam dois olhos pequenos e claros com um ar triste, de quem há muito perdeu o orgulho. Nunca o vi pedir dinheiro mas há quem lhe atire qualquer coisa.
Hoje parei junto dele. Perguntei-lhe:
- Quer comer alguma coisa? Venha, ofereço-lhe o pequeno-almoço aqui no café.
Ele olhou-me. Nos seu olhos pareceu-me ver um ar misto de surpresa, esperança e medo.
- Quem lhe disse que tenho fome? Não preciso de comida!
A resposta desarmou-me por completo. Gelei! Por um instante, o medo e a vergonha atravessaram-me e fiquei com a sensação infantil das crianças que fazem asneira e são descobertas.
Não reagi, não respondi, não fui capaz de dizer uma palavra! Finalmente andei, afastei-me. Apeteceu-me correr, fugir dali, não falar com ninguém.
Durante todo o dia pensei nele e não fui capaz de me concentrar em nada.
Engraçado, nem me lembrei de lhe dizer "Bom dia!". Ou de lhe perguntar o nome...
Talvez da sua boca, com os lábios feridos, saíssem palavras mais agradáveis para mim. Ou talvez não. O que interessa agora? O tempo só tem um sentido.
Ao fim do dia regresso a casa. À medida que me aproximo da travessa do jardim não consigo parar de pensar no episódio ocorrido. O que me dirá ele, quando me vir? Podia tomar um caminho diferente...
Que disparate! Como é que um mendigo me consegue perturbar tanto?
Chego à esquina. Não está cá ninguém. O alívio sucede ao receio e chego a casa para jantar.
Talvez, também ele, tenha ido jantar. Talvez não precise de comida.

Wednesday, October 12, 2005

...

Memória,
viva, solta e livre.
Turbilhão de ideias
prisioneiras de um castelo
onde a vida e a esperança
se encontram numa dança
em espiral.
Já morreste, corpo?
Ou é a memória que me atraiçoa
e se esqueceu de mim?