Monday, December 12, 2005

Náufrago

Sozinho. Abandonado. Só me ocorre pensar porque me terá acontecido isto. Eu não merecia isto!
Dizem que cada um tem o que merece. Não acredito. A ser assim, bastaria esforçarmo-nos por fazer o bem que, inevitavelmente, a vida nos correria bem. E quem é a entidade que avalia e decide da bondade dos actos de cada um? Deus? Ah, ah, deus... Qual? O das pegadas na areia que me carrega na alturas das dificuldades? Esse deixou de andar ao meu lado há já muito tempo.
De qualquer modo, a vida sorri para muitos que não merecem. Tenho inveja, muita. Parece que é um dos pecados capitais. Mais um que carrego...
Engraçado, ao longo da vida nunca perdi muito tempo a pensar na morte. Desde que aqui vim parar depois do acidente, tenho dedicado muito do meu tempo a esta actividade. Dizem que antes de morrer revemos a nossa vida num instante. Espero que não. Desagrada-me pensar que o que fiz se consegue resumir num mísero instante.
Já perdi a esperança de ser encontrado. Nas histórias, os náufragos enviam uma mensagem numa garrafa para poderem ser salvos. Não tenho garrafa, não saberia o que escrever e não sei onde estou. Estou perdido!
Sei que irei morrer em breve. A fome e o cansaço estão a vencer a batalha contra a minha vontade de sobreviver.
Já pensei no suicídio. Assustei-me. Acho que os homens querem duas coisas na vida: sobreviver e ter paz consigo próprios. O pensamento de suicídio vem quando o desejo de paz é maior que o de sobreviver.
Se fosse crente, esta era a altura para me arrepender dos meus pecados. Nunca perdi muito tempo a pensar nas coisas passadas.
Quando era criança e me confessava pensava sempre: "Como é que o padre sabe se eu estou realmente arrependido e que mereço a absolvição?"
Um dia decidi perguntar à minha mãe. Respondeu-me: "Deus sabe se estás a ser verdadeiro ou não."
"Nesse caso, para que serve o padre?", repliquei.
Realmente, um deus que precisa de intermediários para absolver os pecados, não deve ser grande ajuda agora que naufraguei e vim aqui parar.
Talvez seja o meu castigo pela vida que levei. Mas não estou arrependido. Seria oportuno, como o ladrão na cruz que se salva no último instante.
Ficarei à porta do paraíso...

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